Passados 300 anos, o Boca do Inferno ainda surpreende
Adelto Gonçalves
O Boca do Inferno, 300 anos depois, continua a fazer das suas e a rir de seus pósteros, como fizera de seus contemporâneos: é o que se sente depois da leitura de As artes de enganar: um estudo das máscaras poéticas e biográficas de Gregório de Mattos, de Adriano Espínola, poeta e ensaísta, professor da Universidade Federal do Ceará.Originalmente dissertação de doutoramento, este trabalho, como observa Pedro Lyra na apresentação, é, de fato, uma tese no sentido autêntico da expressão, ou seja, uma idéia original e polêmica, defendida com paixão e ousadia. A tese, que contraria todos os estudos feitos até aqui sobre o poeta, defende que o licenciado Manuel Pereira Rabello, considerado o autor da primeira biografia de Gregório de Mattos & Guerra - e gênese das demais -, não passa de uma máscara, uma persona literária. O biógrafo seria o próprio poeta.
Depois de rastrear a vida do licenciado na Torre do Tombo e outros arquivos portugueses, sem nada encontrar, Espínola começou a desconfiar de que estava diante de mais uma armadilha do bardo baiano. E não deu outra: ao comparar as didascálias, que sempre foram atribuídas a uma segunda pessoa, que teria compilado o códice-mãe das produções gregorianas, o estudioso chegou à conclusão de que tudo foi obra do poeta.
Vai ser difícil alguém contestar a tese de Espínola, a não ser que se descubra em algum desvão de arquivo documentos que provem que existiu mesmo um licenciado Rabello, não só contemporâneo como amigo íntimo de Gregório, a ponto de conhecer até detalhes de sua vida conjugal, da infância de seus irmãos ou de sua passagem por Angola. Vai ser difícil, porque o próprio Gregório, que sempre enfiava seus amigos e inimigos em suas sátiras, nunca se referiu ao tal licenciado. Não há nenhuma pista.
Por isso, o melhor mesmo é esquecer o que disseram sobre o assunto Varnhagen, Afrânio Peixoto, Pedro Calmon, James Amado e outros. A partir de agora, o que vale é a tese de Espínola: estamos, portanto, de “uma criação engenhosa do Boca do Inferno, talvez a mais bem sucedida, em termos de mistificação na história de nossa literatura”.
Só que, dessa maneira, ficamos diante também de um enigma: até agora, com base na “biografia do licenciado, imaginava-se que o bardo da Bahia tivesse morrido em 1695, de uma febre contraída na África, com 59 anos, seis dias após a morte de Zumbi dos Palmares. É o que se conclui da biografia assinada por Rabello.
Mas se o licenciado não passa de um alter ego de Gregório, fica claro que o poeta não morreu naquele ano. Aliás, Tomás Pinto Brandão, o Pinto renascido, outro poeta chocarreiro daquele tempo, em poema em que celebra a “ressurreição” do bardo baiano, afirma que Gregório morreu no dia 6 de agosto de 1713. Além desse argumento, Espínola esgrime outro também convincente: há um códice de 1711 que se refere ao Boca do Inferno como o “insigne poeta do nosso século”, ou seja, do século 18. Parece mesmo que o poeta atravessou o século.
Para estabelecer o seu ponto de vista, Espínola estudou também as didascálias que acompanham os poemas gregorianos. Didascálias, para quem esqueceu, são as instruções que, na Grécia antiga, eram dirigidas aos atores. Na poesia, porém, constituem as observações que o autor escreve antes de cada peça poética numa referência a quem inspirou o poema ou ao acontecimento que o motivou. São pequenos textos explicativos que se referem a acontecimentos, lugares, cidades ou personagens que fazem parte do poema.
Por não terem entendido a estrutura dramática da poesia de Gregório de Mattos, vários intérpretes, como constatou Espínola, não só desprezaram por completo a função das didascálias como ainda as atribuíram ao licenciado Rabello, o presumível biógrafo e organizador da obra. Nas didascálias, Gregório de Mattos, megalômano e ególatra como todos os bons poetas dos séculos 17 e 18, refere-se a si mesmo na terceira pessoa, o que deve ter contribuído para que os estudiosos passassem batidos por mais esse disfarce do poeta.Com argúcia, Espínola observou que só mesmo o poeta poderia ter escrito as didascálias, tal a precisão com que remetem para o texto poético.
E mais: as didascálias têm correspondência com a biografia assinada pelo licenciado Rabello, uma simbiose que outra pessoa nunca conseguiria estabelecer. Quem duvidar que as confronte com a breve biografia assinada por Rabello, que está anexada ao final do livro.Protegido pelo disfarce, Gregório de Mattos pôde recontar a sua vida ao seu modo, sem maiores constrangimentos, colocando na boca de outrem os mais rasgados elogios à sua pessoa e à sua família, além de justificar atitudes tomadas ao longo de sua existência.
Ao descrever a sua pretensa morte, antecipou-se em um século a Bocage num episódio semelhante: à beira da morte, teria escrito poemas de arrependimento e fé cristã. Tratam-se, vê-se logo, de engodos característicos do Barroco que avançaram pelo Pré-Romantismo: de Gregório, no primeiro caso; e de amigos de Bocage, no segundo. Não dá para imaginar alguém moribundo fazendo versos bem medidos e pensados.
Não se esgotam aqui os embustes gregorianos levantados por Espínola. O autor garante que as sátiras contra o escritor, até hoje atribuídas ao frei Lourenço Ribeiro, também não passam de outra invenção ardilosa de Gregório de Mattos. As sátiras seriam uma espécie de antibiografia do poeta, porque realçam apenas as qualidades negativas do bardo, em oposição à biografia encomiástica do licenciado Rabello.
Observando com os olhos deste século, poder-se-ia imaginar que ninguém haveria de se referir a si mesmo com palavras tão desmoralizantes. Afinal, Gregório, por meio de Ribeiro, satiriza a si mesmo - “Mil males sobre si põe/Quem de todos fala mal”- a ponto de se chamar “reles ladrão de textos alheios”. Mas esse era também um dos costumes que chegaram até o final do século 18, uma herança da picaresca espanhola.
Ao contrário do que se deu no século 19, o Barroco distinguiu e separou o autor e a obra. Por isso, poemas e romances barrocos, como os picarescos, e pré-românticos não servem muito como testemunhos da vida de seus autores.
Por exemplo: por muito tempo, imaginou-se, com base em seus versos, que Nicolau Tolentino, contemporâneo de Bocage, tivesse sido um caloteiro, um mendigo sempre de mão estendida, quando, na realidade, o que o poeta pintara fora apenas uma máscara, uma persona, como Gregório de Mattos. Na vida real, porém, Tolentino sempre foi um alto funcionário régio, solteirão e bem posto na vida, sem preocupações financeiras.
Eis o que foram os poetas daquele tempo: muito antes de Fernando Pessoa, uns fingidores. E, agora, a partir da tese de Espínola, Gregório de Mattos assume a condição de maior de todos os nossos fingidores. Não será difícil o Boca do Inferno aprontar mais alguma para os estudiosos. Quem viver verá.
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