Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo *

domingo, janeiro 09, 2011

Na boa tradição dos poetas ensaístas

                        Na boa tradição dos poetas ensaístas
                                                                                     Adelto Gonçalves (*)


                                      
Adelto Gonçalves (*)
I
         Para quem quiser se iniciar na arte da crítica, um bom caminho é ler Memórias de um leitor de poesia & outros ensaios, antologia do poeta Antonio Carlos Secchin que reúne textos de variada origem, inclusive entrevistas, um depoimento, o seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras em 2004, uma aula inaugural do ano letivo de 2004 na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e uma comunicação no Congresso de Literatura Brasileira na Universidade do Porto em 2005, entre outros.
         Na boa tradição de poetas ensaístas, que vem de Baudelaire (1821-1867), que exigia que o crítico fosse também poeta, T. S. Eliot (1888-1965), Jorge Luís Borges (1899-1986) e Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), que se tornou bastante conhecido como poeta e cronista, mas pouco referido como ensaísta ou contista, entre outros, Secchin sabe dosar a erudição livresca com senso analítico para tratar os mais variados temas da Literatura Brasileira, desde o Pré-Romantismo ao Modernismo, passando ainda pelas tendências contemporâneas.
         Como exemplo, basta lembrar a observação que faz no ensaio que dá título ao livro, a propósito da impossibilidade de se apostar na “objetividade” da análise, já que a interpretação de uma obra varia de acordo com a época e as circunstâncias em que é objeto de estudo. Secchin observa, com percuciência, que, durante seis décadas, Capitu, personagem de Dom Casmurro, de Machado de Assis (1839-1908), pôde trair Bentinho em paz, pois a suspeita – não de adultério, mas de inocência – só foi explicitamente formulada, em 1960, pela professora e ensaísta norte-americana Helen Caldwell, precursora do movimento feminista nos Estados Unidos. “Impossível, portanto, atribuir um sentido sem levar em conta as condições históricas que viabilizam a sua formulação”, diz Secchin.
         De fato, em Brazilian Othelo of Machado de Assis (1960), Helen Caldwell, à época em que se consolidavam nos Estados Unidos os primeiros escritos de linhagem feminista, inverteu os papéis, colocando Bentinho no banco dos réus. Para ela, Bentinho poderia ser observado também como um neurótico que via em detalhes mínimos “provas irrefutáveis” da suposta traição de Capitu. Como àquela época nem se sonhava com a possibilidade de exame de DNA, esse é um enigma sem solução, pois assim também foi imaginado por seu criador, Machado de Assis, o que, aliás, constitui a grandeza da obra.
         Mas, até 1960, nenhum crítico brasileiro ou estrangeiro havia colocado em xeque o que Bentinho alegava em sua defesa nem o tinha por um desajustado que via além do que a realidade mostrava. Se para Bentinho o seu filho Ezequiel tinha feições e trejeitos que lembravam o seu melhor e finado amigo Escobar, nada justificaria que Capitu não o tivesse traído. Assim também pensava a sociedade patriarcal em que o Brasil vivia mergulhado até então. Tanto que foi necessário uma feminista norte-americana lançar o seu olhar de fora para ver além do que estava escrito. Que o romance de Machado de Assis tenha permitido essa viragem de interpretação é só mais um exemplo da transcendência inata que toda obra de arte guarda intrinsecamente.
                                               II
         A propósito da observação de Secchin, é de lembrar que, nos dias de hoje, discute-se se Monteiro Lobato (1882-1948) pode continuar a ter um de seus livros indicado pelo Ministério da Educação para professores e alunos do ensino fundamental. Ora, os tempos são outros e não há dúvida que o livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, tem observações de teor racista, que devem ser lidas no contexto em que foram escritas. Mas nem por isso justificadas.
         Ao contrário de Machado de Assis, Monteiro Lobato não sobreviveu ao embate com o tempo. É um escritor que tem a sua importância histórica e merece continuar a ser estudado por um ou outro especialista ou historiador, mas já não é um autor que deve ser lido obrigatoriamente por crianças e adolescentes. Boa parte de sua mensagem não condiz com o país miscigenado em que vivemos, ainda que sua obra venha a ser distribuída às escolas públicas com uma nota explicativa.
         Não se está aqui a defender nenhuma forma de censura, mas hoje não já não se aceita pacificamente algumas expressões de racismo explícito que permeiam obras de Monteiro Lobato que seriam destinadas ao público infanto-juvenil. E que são reflexos da sociedade preconceituosa que era o Brasil na primeira metade do século XX. Não se pode deixar de lembrar que a afirmação do afro-descendente no Brasil deu-se, simbolicamente, a partir de 1958, quando a participação de jogadores negros e miscigenados na seleção brasileira de futebol foi decisiva para a conquista da Copa do Mundo na Suécia.
         Até então, no Brasil, vivia-se um apartheid disfarçado, não-oficial – e aqueles que ascendiam socialmente e traziam sinais de sua ascendência africana ou indígena tratavam de disfarçá-las. Quem fez a cobertura política no Congresso, em Brasília, nos anos 70 e 80, lembra muito bem o pânico em que entravam certos deputados ou senadores quando algum repórter, às vezes inadvertidamente até, se lhes referia a alguma herança genética africana que exibiam. Não lhes parecia de bom tom lembrar aquilo, pois se assumiam inteiramente como homens brancos. E não faz tanto tempo assim.
         Não se esqueçam que Campos Sales (1841-1913) e Nilo Peçanha (1867-1924) foram presidentes da República cujas raízes africanas acabaram totalmente borradas pelos historiadores. E, hoje, só sabemos desse fato porque um ou outro cronista ou desafeto político escreveu sobre isso em jornais da época.
         Até bem pouco tempo atrás, os brasileiros fazíamos enorme esforço para nos mostrar brancos e europeus, sempre procurando negar a África que carregávamos irremediavelmente em nós. Mas, hoje, com a conscientização cada vez mais forte de que somos uma sociedade miscigenada, não há sentido distribuir aquele tipo de livro às escolas públicas, pois só estaríamos ajudando a insuflar o preconceito racial e social. Isso não significa que Monteiro Lobato não possa ter seus livros reeditados sempre que um editor o queira. Mas daí o Ministério da Educação distribuir alguns de seus livros que tenham expressões de teor racista a crianças e adolescentes vai uma grande distância.
         Afinal, ninguém pode ser impedido de ler O manifesto comunista, de Friedrich Engels (1820-1895), O capital, de Karl Marx (1818-1883), Mein Kampf, de Adolf Hitler (1889-1945), ou Os protocolos dos sábios de Sião, propaganda anti-semita apócrifa na tradução de Gustavo Barroso (1888-1959), mas não se pode admitir que um governo democrático possa distribuí-los impunemente aos estudantes de escolas públicas. São referências históricas.
                                               III
         Portanto, a leitura de Secchin nos ajuda a entender até um caso recente como esse que se refere a Monteiro Lobato. Como diz o editor José Mario Pereira na apresentação que fez para Memórias de um leitor de poesia..., Secchin é “um intérprete do fenômeno literário que não se deixa enlear pela camisa-de-força de escolas e métodos de interpretação, capaz de temperar com argúcia e sensibilidade raras o que mais lhe convém no campo da teoria”. E mais: “pertence à estirpe de críticos que se empenham em remover a pátina do tempo e, sobretudo, a baba dos áulicos e o veneno dos desafetos de ocasião para restaurar o que de bom e de útil leitores, críticos e autores atuais podem encontrar direto nas obras”, como observa José Nêumanne Pinto, em resenha que fez deste livro.
         É exatamente o que Secchin faz no ensaio “Vinícius: os caminhos de uma estréia” em que analisa a fase inicial da carreira do poeta que, ao enveredar na sua fase madura pela música popular brasileira, passou a ser visto com certas reservas pela crítica literária. E conclui que as escolhas do jovem Vinícius de Moraes (1913-1980), “superada a voz dogmática de seus poemas do livro de estréia, o (e)levariam à condição de maior poeta lírico da poesia brasileira do século XX”.
         Só que, como reconhece Secchin, essa história ainda está por ser contada e comprovada no cotejo com aqueles poetas que lhe foram contemporâneos. A princípio, porém, não há como negar que foram raros os poetas líricos do século XX que chegaram ao nível de Vinícius de Moraes, hoje mais lembrado pelos versos que escreveu para músicas criadas por compositores do show business.
                                               IV
         Além de acadêmico, Secchin é professor titular da Faculdade de Letras da UFRJ, doutor em letras pela mesma instituição e bibliófilo de renome. Publicou, entre outros, João Cabral: a poesia do menos (São Paulo, Duas Cidades, 1985), Poesia e desordem (Rio de Janeiro, Topbooks, 1996), Todos os ventos (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2010), Escritos sobre poesia & alguma ficção (Rio de Janeiro, Eduerj, 2003) e 50 poemas escolhidos pelo autor (Rio de Janeiro, Galo Branco, 2006). Foi o organizador de Poesia completa, de Cecília Meireles (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2001), Poesia completa e prosa de João Cabral de Melo Neto (Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2008) e de Poesia completa, teatro e prosa de Ferreira Gullar (Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2008).
         Mas, como se disse ao início desta recensão, Secchin é, antes de tudo, um poeta que sabe definir como poucos o seu ofício, ou seja, um crítico e um ensaísta de mão cheia. “A poesia é o lugar do imponderável, onde, portanto, até o ponderável pode acontecer. Mas nada disso vale, se o delírio não se submeter ao imperativo da forma”, diz. Já o poeta, para ele, é “uma ilha cercada de poesia alheia por todos os lados: insulado em si, no seu comportamento radical de criar uma palavra tanto quanto possível própria, mas abastecida pelo manancial que flui dos mais diversos mares discursivos”. Só estas palavras já bastam para se recomendar a leitura destas Memórias de um leitor de poesia...
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MEMÓRIAS DE UM LEITOR DE POESIA & OUTROS ENSAIOS, de Antonio Carlos Secchin. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras/Topbooks, 273 págs., R$ 39,00, 2010. E-mail: topbooks@topbooks.com.br
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br

Um comentário:

  1. Excelente!
    Obrigada Professor Adelto, por dividir seus conhecimentos.
    L.A.Borges-MG

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