Adelto
Gonçalves (*)
I
Se
o Brasil já soube reverenciar os seus grandes escritores, como ao tempo de José
de Alencar (1829-1877), Machado de Assis (1839-1908), Olavo Bilac (1865-1918),
Graciliano Ramos (1892-1953) e Jorge Amado (1912-2001), hoje não o faz tanto. E
não é porque não existam grandes escritores. É por desconhecimento mesmo das
novas e velhas gerações que são bombardeadas por literatura norte-americana de
baixo nível, que aqui chega em formato de livros de auto-ajuda.
Quem
é professor de Língua Portuguesa na graduação conhece bem o drama: se pedir
para que seus alunos escrevam resenha crítica de algum livro que já tenham lido
nos últimos anos, será contemplado com apreciações sobre os chamados best
sellers de autores norte-americanos. E mais: na maioria, são resenhas que tiram
da Internet e que assumem como suas, praticando apropriação indébita. Mas o que
esperar de um País que há muito tempo não prepara seus professores do ensino
fundamental e médio, mas pretende “inundar” as escolas públicas de lousas
digitais, provavelmente porque algum figurão há de ganhar gordas comissões nas
vendas para prefeituras e órgãos públicos?
Mas
nem tudo está perdido. Ainda bem que, de vez em quando, aparece um editor de
visão e bons propósitos, como Nicodemos Sena, que, aliás, é também um fino
escritor. Diretor da Associação Cultural Letra Selvagem, de Taubaté-SP, Sena
vem relançando vários livros que já deveriam ter sido canonizados na História
da Literatura Brasileira. Mas que, sabe-se lá por que, não o foram.
É
o caso de Selva Trágica, de Hernâni Donato, que, lançado em 1960, causou grande
impacto no leitor a ponto de esgotar quatro edições. E não só. Em 1963, em
função do sucesso de crítica e de público, foi transformado em filme em preto e
branco pelo diretor Roberto Farias, marcando a estréia de Reginaldo Farias, que
viria a se tornar um dos principais atores do cinema brasileiro. O filme ganhou
o Prêmio Saci, promovido pelo jornal O Estado de S. Paulo, e representou o
Brasil no Festival de Veneza. Hoje, é considerado um “clássico” do Cinema Novo
brasileiro e não pode faltar no acervo de uma cinemateca.
Hernâni
Donato, 90 anos, nasceu em Botucatu, interior de São Paulo, em uma família de
imigrantes italianos. Filho de um operário, mesmo com dificuldades, tornou-se
um intelectual de sólidos conhecimentos e, profissionalmente, desempenhou a
atividade de publicitário. Membro da Academia Paulista de Letras, é autor de
mais de 70 livros, nos mais variados gêneros, indo da literatura
infanto-juvenil à biografia, da historiografia aos costumes, da pesquisa à
divulgação científica. Traduziu a Divina Comédia, de Dante Alighieri. Como
romancista, publicou ainda Chão Bruto, Rio do Tempo, O Caçador de Esmeraldas e
Filhos do Destino, que obtiveram êxito editorial nas décadas de 1950 e 1960.
II
De
que trata Selva Trágica? É um romance-documento como poucos na história da
Literatura Brasileira. À maneira de Gustave Flaubert (1821-1880) e Émile Zola
(1840-1902), o jovem Donato empreendeu uma minuciosa pesquisa não só em fontes
impressas como in loco, visitando a região em que situou o seu romance e
entrevistou pessoas que serviriam para compor seus personagens. Ouviu casos
terríveis contados por antigos trabalhadores das “minas” de erva-mate no Mato
Grosso, na fronteira com o Paraguai, que só não surpreendem porque no Brasil de
hoje os jornais, de vez em quando, ainda trazem notícias de que as autoridades
federais flagraram trabalho escravo em fazendas.
É
do que trata, em poucas palavras, o livro de Donato. Até 1938, período do
primeiro governo de Getúlio Vargas, o nosso clone de Hitler e Mussolini,
manteve-se o monopólio da Companhia Mate Laranjeira, empresa argentina que
explorava a extração do mate nos ervais do Mato Grosso. O trabalho era
desumanamente desenvolvido em condições que fariam o Inferno, de Dante
Alighieri (1265-1321), parecer um oásis.
Ao
final da década de 1950, quando Donato embrenhou-se nos ervais em busca de
material para o seu romance, ainda havia cerca de cinco mil homens e mulheres
que trabalhavam em condições subumanas, sem descanso, durante 14 horas por dia,
na colheita e transporte da erva. Ainda assim, há historiadores que afirmam que
o período Vargas (1930-1945) foi aquele em que pela primeira vez os
trabalhadores tiveram seus direitos reconhecidos e respeitados. Talvez isso se
tenha dado em grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, porque no
interior o Brasil sempre foi um imenso campo de concentração, que nada ficaria
a dever a Auschwitz-Birkenau ou ao Gulag soviético, ainda que em tempos de paz.
III
Entre
as muitas histórias que Donato recolheu e transportou para a literatura, estão
a do homem que teve de lutar de garrucha em punho e viu seu filho morrer,
porque ousou escrever sobre o que se passava na cultura do mate; e a do peão
que trazia no corpo sinais de 18 facadas, com cortes que haviam sido costurados
com agulha e barbante de costurar saco. Mas isso ainda era pouco: diariamente,
os homens tinham de transportar o mate entre a “mina” e o acampamento, pelo
meio da selva bruta, em fardos de 150 ou 200 quilos, amarrados às costas.
Qualquer passo em falso causava a quebra da espinha dorsal do carregador. A
vítima gemia a noite inteira, até que os demais trabalhadores pediam ao
administrador que tivesse caridade. Então, os próprios companheiros recorriam
ao jogo de cartas para que ao perdedor coubesse a tarefa de “de dar paz ao moço
desgraçado”, ou seja, dar um tiro na cabeça daquele ser agonizante (pág.36).
Os
bebedores de mate – hábito ainda largamente difundido não só no Centro-Oeste e
Sul do Brasil como nos países de fala hispânica – que viviam na cidade,
provavelmente, nem imaginavam como a erva-mate seria cultivada. Talvez tenham
ficado indignados com os fatos narrados em Selva Trágica, o que justificaria a
procura que o livro despertou no acanhado ambiente cultural paulista e carioca
daquela época.
São
narrações pungentes que horrorizam pela brutalidade com que era tratado o
“uru”, o homem responsável pelo “barbaquá”, espécie de forno de madeira em que
a erva era preparada para o consumo. Esse coitado era obrigado a trabalhar dia
e noite sem parar, remexendo as folhas da erva sob um calor infernal. Depois de
algum tempo trabalhando sob essas condições atrozes, todos os pelos de seu
corpo secavam, caindo.
O
trabalhador ficava esturricado e se transformava num feixe de ossos, talvez
parecendo um salame defumado, enquanto os diretores da Companhia Mate
Laranjeira confraternizavam-se com os donos do poder no palácio do governo em
Cuiabá, no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, na Casa Rosada, em Buenos
Aires, e no Palácio de los López, em Assunção, garantindo o privilégio do
monopólio da extração da erva.
Por
aqui se vê que Selva Trágica é um romance épico, que, incompreensivelmente,
estava esquecido. E olhem que não foi por falta de reconhecimento da crítica.
Temístocles Linhares em História Econômica do Mate (Rio de Janeiro, Livraria
José Olympio Editora, 1960) já o considerara um “romance másculo, forte,
bárbaro, como bárbara era a selva, como bárbaro era o trabalho nos ervais”.
Artur Neves, na Revista Anhembi (São Paulo, 1961), já o definira como “uma
história como nunca foi escrita em nossa terra”.
IV
Como
observa o professor e crítico literário Fábio Lucas em O Caráter Social da
Literatura Brasileira (Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1970), em texto que
serve de prefácio para esta edição, Selva Trágica constitui “um dos mais altos
momentos da novelística de conteúdo social no Brasil”. Lembra Fábio Lucas que
os ervateiros eram mobilizados na fronteira Brasil-Paraguai e levados por
máfias para casas de prostituição, até que, bêbados, assinavam um contrato
leonino com a companhia. Ficavam devedores para sempre, ganhando apenas para
comer. Aos que tentavam escapar do inferno, restava a perseguição dos capangas
da companhia que, quando os capturavam, espancavam-nos até a morte. “Não pense
que gosto de mandar bater. Mas quem segura esse povo no duro do trabalho se não
usar dureza?”, dizia Curê, o administrador (pág.142).
Os
capatazes da companhia eram tão sórdidos que se sentiam no direito de abusar
das mulheres dos ervateiros, enquanto estes se embrenhavam no mato. As mulheres
serviam também para pagar dívidas, funcionando como moeda de troca entre os
homens. Mas, apesar da sordidez da vida que levavam, havia ainda aqueles que
encontravam forças para lutar contra a exploração e defendiam a extinção do
monopólio da companhia. Entre esses, estavam os changa-y, “os mais miseráveis
dos miseráveis dos trabalhadores da erva”, aqueles que tentavam trabalhar sem o
patrão-algoz.
Luisão
era um desses que escapara do inferno verde e andara por Cuiabá e Rio de
Janeiro em conversas e peditórios com os políticos favoráveis à extinção do
privilégio da companhia ervateira. Dizia aos companheiros: “A Companhia faz
também essa e faz a grande política em Cuiabá, em São Paulo, no Rio, em Buenos
Aires, sei lá onde mais. Assim, cobre os gemidos e os gritos da pobre gente dos
ervais. No andar em que vamos, nem no fim do século teremos forças para
emparelhar o nosso passo com o passo da Companhia. Lá fora é que é preciso gritar.
O Governo é que nos pode ajudar se chega a nos ouvir. Mas o Governo só ouve
ribombo, soluços não” (págs. 136/137).
Não
por coincidência publicado em 1956, mesmo ano em que saiu à luz Grande Sertão:
Veredas, de João Guimarães Rosa (1908-1967), Selva Trágica é um passo adiante
do romance regionalista da década de 1930, época em que o pobre entrou
triunfalmente na Literatura Brasileira. Ambientado no mundo da fronteira, traz
ainda uma complexa linguagem narrativa, um verdadeiro amálgama da língua portuguesa
com o linguajar guarani, como observa a professora Nelly Novaes Coelho, da
Universidade de São Paulo, na apresentação que escreveu para esta edição.
Nesse
sentido, é de acrescentar que Selva Trágica tem muitos pontos de aproximação
com o trabalho do romancista, contista e antropólogo peruano José María
Arguedas (1911-1969), autor de Los Ríos Profundos (1956), Todas las Sangres
(1964) e El Zorro de Arriba y el Zorro de Abajo (1971, póstumo), entre outros,
que igualmente fazia um trabalho de campo antes de escrever sobre a realidade
do mundo quechua no Peru. Não por acaso os livros de ambos são permeados por
inevitáveis notas de rodapé que servem para explicar as palavras tiradas do
idioma indígena.
Houve
ainda quem comparasse Hernâni Donato com Erskine Caldwell (1903-1987) e John
Steinbeck (1902-1968), a geração norte-americana da revolta, o Caldwell de Chão
Trágico (Tragic Ground, 1944), um mergulho na vida dos vencidos e desgraçados
do Sul dos Estados Unidos, e o Steinbeck de As Vinhas da Ira (The Grapes of
Wrath,1937), que conta a história de uma família pobre no estado de Oklahoma
durante a Grande Depressão de 1929, que, obviamente, nada têm a ver com a atual
geração de norte-americanos produtores de best sellers que envenenam a nossa
pouco letrada juventude.
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SELVA
TRÁGICA, de Hernâni Donato. Taubaté-SP: Associação Cultural Letra Selvagem, 288
págs., 2011, R$ 35,00. E-mail: letraselvagem@letraselvagem.com.br Site:
www.letraselvagem.com.br
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Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho,
2003), entre outros.
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