Barcelona Brasileira
ADEMIR DEMARCHI (*)
Barcelona Brasileira, romance do jornalista e escritor Adelto Gonçalves, ilustra a riqueza de tensões ideológicas em jogo no Porto de Santos, por onde se escoava principalmente a produção de café no início do século 20.
Nesse livro a cidade se transparece em uma multiplicidade de ideologias conflitantes em meio à vitalidade do movimento operário em crescente organização no país graças à vinda de estrangeiros para trabalhar nas indústrias de São Paulo e no Porto.
As tensões estão nos ultraconservadores de direita personificados em empresários locais e num delegado incensado por eles como a solução para acabar com o arroubo dos militantes de esquerda, líderes sindicais comunistas e anarquistas espanhóis.
Ángel Blanco, o Espanhol, vindo de Barcelona, personifica e reforça o ideário anarquista no meio do movimento operário, sendo foco de ódio tanto de conservadores quanto de comunistas que odeiam anarquistas justamente por sua natureza contestatória que não cabe em partidos centralizadores como os comunistas.
Por isso, Blanco é talvez o personagem mais emblemático desse romance, dada sua mobilidade e capacidade de articulação subversiva que o faz transitar fugindo de Barcelona para vir infiltrar-se no movimento operário brasileiro, ser expulso do país e retornar tempos depois para novas investidas, numa determinação militante admirável. O ódio de comunistas a ele poderia ser explicado facilmente por sua afirmação de que “não existia ditadura do proletariado, mas apenas ditadura”.
Assim pensando, a ação de Blanco é altamente incômoda, uma vez que as forças conservadoras, defensoras da propriedade à base da alta exploração do proletariado empobrecido, se uniam em torno do delegado. Apoiado pelo governador do Estado e um deputado, sua missão era combater o que identificavam como um único mal “agourento” que vinha “das longínquas, das indecifráveis regiões da Rússia”.
Em meio à turbulência que anunciava a modernização do país, está o poeta lírico Martins Fontes, um passadista, em nada filiado à estética contestadora nascente, dada a ingenuidade marcante de seus versos.
Adelto o personifica como era, um homem bom, médico cuidando de graça de pessoas pobres, ocupando-se de tuberculosos e vítimas da gripe espanhola, já que não eram apenas de anarquistas vindos da Espanha que Santos se ocupava…
Se sua poética era sentimental e de certa forma alienada, no romance ele tenta sair da camisa de força burguesa, ajudando pobres e operários. Parece fadado, porém, mais a uma Helena em nada grega, antes amulatada, que o distrai entre uma enfiada na vida burguesa e outra no meio operário, que a ser um militante como Blanco.
Operários morrem, manifestações, perseguições e investigações são feitas, dando cor à Barcelona Brasileira em que muito mais contestação havia que nos tempos que correm, de mais intensa alienação e especulação imobiliária…
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(*) Ademir Demarchi é doutor em Letras na área de Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), poeta e editor da Revista Babel.
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