Dicke: a reparação de uma injustiça literária
Adelto Gonçalves (*)
I
Em algum lugar, este articulista já escreveu – e repete-o agora – que, daqui a cem anos, o historiador literário que pretender traçar um inventário da melhor literatura produzida no Brasil na segunda metade do século XX e nas primeiras décadas do século XXI não poderá se limitar a consultar as listas dos livros mais vendidos das revistas semanais nem os catálogos das grandes editoras.
Se o fizer, correrá o risco de cometer equívocos, tal como o investigador que se satisfaz ao compulsar apenas a documentação oficial de determinado período histórico – porque acaba por ficar com a visão de apenas um lado da História e exatamente o mais forte e opressivo. Afinal, boa parte da literatura de melhor qualidade vem sendo publicada no Brasil por pequenas editoras fora do eixo São Paulo-Rio de Janeiro.
Basta ver que nenhuma das casas editoriais paulistas e cariocas de hoje ocupou o vácuo deixado pela Livraria José Olympio Editora, do Rio de Janeiro, que, da década de 1940 até meados da década de 1980, cumpriu exemplarmente o papel de incentivar os jovens talentos, revelando um grande número de romancistas, contistas e poetas que hoje fazem parte da história da Literatura Brasileira.
Uma prova do que se escreve aqui é o romance Deus de Caim, de Ricardo Guilherme Dicke (1936-2008), que agora sai em terceira edição pela editora Letra Selvagem, de Taubaté-SP, depois de ter sido publicado pela Edinova, do Rio de Janeiro, em 1968, e pela Gráfica Sereia, de Cuiabá, em 2006. Se tivesse sido lançado à época pela José Olympio, teria seguido um percurso natural, ganhando maior divulgação na imprensa e adquirido o foro de grande revelação literária. Afinal, em 1967, o romance conquistara o quarto lugar do Prêmio Nacional Walmap, o mais importante do País à época, depois de analisado por um júri integrado por Guimarães Rosa (1908-1967), Jorge Amado (1912-2001) e Antonio Olinto (1919-2009).
O primeiro lugar ficou com Jorge, um brasileiro, de Oswaldo França Júnior (1936-1989). Olhando-se a uma distância de 45 anos, é de reconhecer que o júri não andou mal ao escolher o livro de França que, talvez até em função da premiação ou do ativismo literário do próprio autor, tornou-se mais conhecido e teve melhor fortuna crítica, assim como boa parte da produção do escritor mineiro, ainda que se possa dizer que, literariamente, o romance de Dicke é mais bem trabalhado e cerebral. Por isso, mereceria ter tido melhor sorte.
II
Ao contrário de Oswaldo França Júnior, que, morando em Belo Horizonte, teve alguns de seus livros publicados pela Nova Fronteira, do Rio de Janeiro, e, dentro das limitadas dimensões da literatura num país ainda extremamente inculto, tornou-se um nome conhecido nacionalmente, Dicke teve uma carreira literária, praticamente, ignorada, ainda que tenha sido citado por alguns raros autores e estudiosos, que conheciam a sua obra e reconheciam sua importância. Entre aqueles que se referiram com entusiasmo à obra de Dicke estão Hilda Hilst (1930-2004), Nélida Piñon (1937) e até o cineasta Glauber Rocha (1939-1981), que chegou ao exagero de afirmar que Dicke era “o maior escritor vivo do Brasil, mas que ninguém o conhecia”.
Quem consultar hoje o Google talvez venha a concluir que foi preciso que Dicke morresse para que seu nome passasse a se tornar mais conhecido. De fato, hoje, já não é tão desconhecido assim. E até já ultrapassou os muros da universidade. Em 2005, Juliano Moreno Kersul de Carvalho, mestre em História pela Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), apresentou a dissertação “Do sertão ao litoral: a trajetória do escritor Ricardo Guilherme Dicke e a publicação do livro Deus de Caim na década de 1960”. Para escrevê-la, teve a oportunidade de consultar o arquivo particular do autor. É de sua autoria o prefácio da segunda edição, reproduzido também nesta terceira edição.
Em 2011, Luciana Rueda Soares, professora de Língua Portuguesa, também obteve o seu mestrado em Letras pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) com a dissertação “A configuração das personagens em Madona dos páramos, de Ricardo Guilherme Dicke”, mas, antes disso, já escrevera o artigo “Ricardo Guilherme Dicke e a marginalização do sistema literário tradicional brasileiro”, fruto das pesquisas para a sua tese de mestrado, em que aborda a questão da ausência do escritor no cânone literário nacional.
Luciana afirma que essa constitui apenas uma das muitas injustiças que ocorrem em uma sociedade em que uma elite intelectual determina o que tem valor estético ou não. Para ela, “são muitos os excluídos da lista canônica, mas com o avanço e a globalização das informações é só uma questão de tempo e oportunidade para que essa questão seja revista”. Ainda bem. Aliás, a reparação dessa injustiça começa a ser feita pela terceira edição de Deus de Caim, pela Letra Selvagem, que vem alcançando grande repercussão nos jornais que ainda dedicam espaço à literatura. Com essa (re)descoberta do grande autor que Dicke sempre foi, o que se espera é que as dissertações de Juliano Moreno Kersul de Carvalho e Luciana Rueda Soares também sejam publicadas em livro em breve.
Sem contar que a terceira edição de Deus de Caim traz também uma apresentação de Nelly Novaes Coelho, professora titular da Universidade de São Paulo, em que a renomada crítica literária diz que este labiríntico romance “deu início à grande obra que Ricardo Guilherme Dicke realizou durante toda a sua longa vida”.
III
Dicke nasceu em Chapada dos Guimarães, em Mato Grosso, onde passou a infância. Era filho de um alemão que viveu no Paraguai e mudou-se para o Brasil. Já adulto, passou a morar em Cuiabá, onde chegou a escrever o seu primeiro livro, Caminhos de Sol e Lua. Ainda bastante jovem, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se licenciou em Filosofia e especializou-se em Merleau-Ponty (1908-1961) e fez mestrado em Filosofia da Arte na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Estudou pintura e desenho e participou do Salão de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1966.
A essa época, trabalhou como revisor, redator e tradutor e foi repórter de O Globo. Depois da publicação de Deus de Caim em 1968, resolveu voltar a Cuiabá, onde trabalhou como professor e jornalista e fez várias exposições de seus quadros. Ao morrer, aos 72 anos, deixava uma obra respeitada por alguns intelectuais, mas ao mesmo tempo ignorada. Seus livros, na maioria, foram publicados por editoras pequenas, em tiragens reduzidas, e repercutiram pouco na imprensa do Rio de Janeiro e São Paulo. Ao que parece, deixou ainda algumas obras inéditas nas mãos da viúva, Adélia Boscov, com quem casara aos 26 anos de idade.
Publicou ainda Como o silêncio (1968), Caieira (1978), Madona dos páramos (1981), Último horizonte (1988), A chave do abismo (1986), Cerimônias do esquecimento (1995), Rio abaixo dos vaqueiros (2001), Salário dos poetas (2001), Conjunctio oppositorum no Grande Sertão (2002) e Toada do esquecimento & sinfonia eqüestre (2006).
IV
Inspirado em conhecido mito bíblico, Deus de Caim conta a história de dois irmãos gêmeos, Jônatas e Lázaro, que se apaixonam pela mesma mulher, Minira, localizando-os em Pasmoso, cidade inventada assim como a Yoknapatawpha, de William Faulkner (1897-1962), a Macondo, de Gabriel García Márquez (1927), e a Santa Maria, de Juan Carlos Onetti (1909-1994), imaginada no interior do Mato Grosso. Com estilo denso, Dicke leva o leitor para um mundo dominado pelo ódio e pela incompreensão, em que todos parecem condenados ao inferno.
Na apresentação que escreveu para o romance, o escritor e crítico Ronaldo Cagiano diz que Deus de Caim “se converte numa escritura das paixões e desatinos humanos; é também fruto de uma catarse do autor e de seus personagens, tal o fluxo desordenado, eruptivo e fulminante com que sua narrativa, tecnicamente apurada, vai se processando”. E observa que, “ao traçar um painel da vida rural e urbana do Mato Grosso, Deus de Caim desvela também as tensões sociais da época, o garroteamento da liberdade, a relação entre a civilização e a barbárie, entre o campo e a cidade, entre a descrença e a utopia, entre o imperativo da modernidade e os grilhões do atraso”.
Já no prefácio que escreveu para a primeira edição de Deus de Caim, o acadêmico Antonio Olinto comparou o estilo de Dicke com o de Louis-Ferdinand Céline (1894-1961), embora soubesse que o escritor matogrossense nunca havia entrado em contato com a obra do francês. E observou que “o estilo e os temas de Céline andavam no ar e outros escritores os pegavam sem precisar de leitura”. Para o crítico, ambos os escritores usam “uma linguagem de ódio”, embora Dicke use também “uma linguagem de amor, não o romântico, o de puro sentimento, mas o erótico, o da loucura de Eros que, felizmente, o mais civilizado dos homens e a mais industrial das sociedades ainda são capazes de ter”.
O que é de admirar é que um romance dessa qualidade tenha passado, praticamente, despercebido pela crítica e pelas grandes editoras (e, por extensão, pelo leitor) durante tanto tempo. A culpa, com certeza, não cabe ao autor.
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DEUS DE CAIM, de Ricardo Guilherme Dicke. Taubaté-SP: Letra Selvagem, 2010, 400 págs., R$ 40,00. E-mail: letraselvagem@letraselvagem.com.br Site: www.letraselvagem.com.br
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003).
Brilhante, Adelto.
ResponderExcluirJá enviei para muitíssimos brasileiros.
Vale corrigir qualquer injustiça,
ainda mais a que você descreve
tão inspiradamente, a favor do mais
legítimo resgaste da nossa história.
Obrigada e parabéns,
Abraços,
Eliana Crivellari-BH-MG