HISTÓRIA
A punição das elites
Adelto Gonçalves (*)
I
Fundada em 1997, a Revista Portuguesa de História do Livro vem sendo editada semestralmente por empenho de seu fundador, o professor Manuel Cadafaz de Matos, doutor pela Universidade Nova de Lisboa em Estudos Portugueses (área de História do Livro), diretor científico do Centro de Estudos de História do Livro e da Edição (Cehle) e membro da Academia Portuguesa da História, além de professor convidado da Universidade de Barcelona.
Embora conte com o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, do Ministério da Cultura e da Direcção Geral do Livro e das Bibliotecas (DGLB), de Portugal, a revista padece das dificuldades que são comuns às publicações acadêmicas e nem sempre mantém a regularidade que seria desejável. Mas não é por isso que aqui se vai tratar com atraso considerável do volume 23, ano XII, de 2009, mas porque esse número é dedicado ao Brasil, especialmente ao segundo centenário da introdução da imprensa em seu território e, portanto, constitui contribuição de grande interesse para todo historiador brasileiro.
De destacar é o trabalho “Imprensa e independência: os primeiros jornalistas no banco dos réus”, de Isabel Lustosa, doutora em Ciência Política, pesquisadora da Fundação Casa Rui Barbosa, do Rio de Janeiro, e autora de Insultos Impressos: a guerra dos jornalistas na Independência-1821-1823 (São Paulo: Companhia das Letras, 2000), sua tese de doutoramento defendida em 1997. Nesse trabalho, a historiadora assinala que os últimos anos do reinado de d. João VI foram ensombrecidos pelo rigor da punição aos implicados de 1817 em Pernambuco e em Portugal, quando a pena capital foi aplicada à larga. Até então, diga-se de passagem, desde os tempos de príncipe regente, a imagem que d. João passava era a de um homem magnânimo, que tinha aversão à aplicação da pena de morte.
II
Se a este articulista é permitido acrescentar alguma coisa ao trabalho irretocável de Isabel Lustosa, é para dizer que sempre houve “implicados” e “implicados”. Em outras palavras: tal como se dá ainda hoje, nos tempos do Brasil Colônia e do Brasil Império, a lei sempre existiu para punir os desvalidos, aquela massa de não-proprietários que incluía não só indígenas e escravos africanos como brancos pobres e miscigenados, ou seja, uma população luso-brasileira formada basicamente por caipiras, caboclos, carijós, cabras, mulatos e cafuzos, homens livres, mas sem fortuna, que na documentação aparecem, muitas vezes, rotulados como “nacionais” ou “brasileiros”.
Afinal, o Estado, como ainda hoje em muitos aspectos, não existia para prover à população os serviços fundamentais, mas, sim, para viabilizar riquezas e a perpetuação daqueles que faziam negócios sob a sua tutela ou que o representavam. Não havia o pressuposto de que todos os homens seriam iguais perante a lei. Nobres, clérigos e grandes comerciantes, se não estavam explicitamente acima das leis, dificilmente seriam passíveis de punição. Mas havia diferenças entre ricos e outros não tão ricos, até porque pobres nem eram levados em consideração.
Fosse como fosse, dependendo das circunstâncias, um proprietário também poderia para ir para a cadeia e mofar na enxovia por anos a fio. Foi o que ocorreu, por exemplo, a Antônio da Silva Costa, em Vila Rica, ao tempo em que lá era ouvidor Tomás Antônio Gonzaga. Por alguma razão, Costa deixou de pagar umas terras minerais que havia arrematado em juízo. E acabou “esquecido” pelo ouvidor na prisão por quatro anos, tempo em que suas terras e uma lavra ficaram abandonadas e 27 de seus escravos morreram. Saiu da prisão com mais de 70 anos, em estado de absoluta pobreza, por interferência do governador Luís da Cunha Meneses, aquele que passaria para a História como o Fanfarrão Minésio das Cartas Chilenas. Para minorar o sofrimento de Costa, Cunha Meneses iria até contrariar a lei, ao lhe conceder indulto, privilégio que só cabia à rainha.
A quem está acostumado a dividir o mundo entre bandidos e mocinhos este episódio pode parecer de sinais trocados. Afinal, Gonzaga seria também o mavioso poeta de Marília de Dirceu, coleção de poemas eivados de humanitários sentimentos. E Cunha Meneses um governador bronco, cruel e venal. Quem duvidar do que se escreve aqui que vá à Casa Setecencista do Pilar de Ouro Preto e consulte, entre os documentos do 1º Ofício, o códice 426, auto 8650, 1783.
III
A propósito da Revolução de 1817 em Pernambuco, há de se ressaltar que os implicados eram, na maioria, membros da elite. Muitos foram punidos com a pena capital, mas um deles não o foi. Por que escapou é que não se sabe, mas é possível tirar algumas ilações. Trata-se de Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, ex-juiz de fora da vila de Santos e irmão de José Bonifácio, que passaria para a História como o patriarca da Independência.
É de lembrar que, em 1811, quando já estava nomeado para ouvidor da comarca de São Paulo, Antônio Carlos seria acusado de mandante do assassinato do comerciante José Joaquim da Cunha, morador à Rua Direita, na vila de Santos. Quem fez a acusação foi a viúva D. Bárbara Emília de Athayde Fernandes Pinheiro, que assistira, em sua própria morada, por volta das 9 horas da noite do dia 11 de agosto, à morte do marido por embuçados armados.
A devassa que apurou o assassinato acabou por não incriminá-lo, o que levou a viúva a considerá-la um jogo de cartas marcadas. Mulher de posses, D. Bárbara mudou-se para o Rio de Janeiro e pediu pessoalmente ao príncipe regente d. João a abertura de outra devassa, sob a alegação de que o novo juiz de fora da vila de Santos, João Carlos Leal, responsável pelas investigações, seria amigo de Antônio Carlos, inclusive seu “hóspede”. De fato, Leal, que substituíra Antônio Carlos nas funções de juiz de fora da vila de Santos, havia residido na morada daquele a quem lhe coubera julgar. O chamado corporativismo parece que funcionou a valer nesse caso.
Pressionado e ameaçado de prisão, Antônio Carlos homiziou-se na freguesia de São Gonçalo da Praia Grande de Niterói, valendo-se de suas ligações com os meios maçônicos. Lá, inclusive, participaria da fundação de uma loja maçônica para discutir ideais republicanos. Chegou a ser detido por alguns dias, mas saiu ileso também da nova devassa. Contra si nada ficaria provado, mas perdeu o cargo de ouvidor da comarca de São Paulo, voltando, porém, a assumir as funções de auditor de guerra em São Paulo.
Em 1815, depois de novas injunções políticas de sua família, acabaria por receber por carta régia a nomeação para ouvidor da comarca de Olinda, na capitania de Pernambuco. Aconteceu, porém, que, a 6 de março de 1817, quando desempenhava um trabalho de correição em Olinda, recebeu a notícia de que uma revolta tomara conta dos quartéis do Recife. Inconformados com a queda da cotação do açúcar e do algodão e a elevação do preço dos escravos, os potentados recifenses estimularam a eclosão de uma revolta contra o poder régio, aproveitando-se do descontentamento da população com a administração do governador e capitão-general Caetano Pinto de Miranda Montenegro. Os revolucionários implantaram um governo provisório, proclamando uma república de inspiração maçônica que estabelecia a igualdade de direitos e de tolerância religiosa, mas que, prudentemente, não tocava na questão da escravatura.
Antônio Carlos aderiu à sedição. Sufocada a revolta, ao lado dos demais revoltosos, seria embarcado para a Bahia com uma corrente de ferro ao pescoço. No cárcere, sofreria torturas físicas e psicológicas, ao longo de quase dois anos. Continuaria preso na Bahia até 1821, quando foi libertado, provavelmente, por intercessão de seu irmão José Bonifácio, que havia retornado de Portugal ao final de 1819. Chegaria a Lisboa em fevereiro de 1822, como representante de São Paulo às Cortes, levando em mãos um documento que seu irmão, à época vice-presidente da junta governativa da província, redigira com uma série de recomendações quanto à igualdade de direitos civis e políticos. Como explicar tamanha mudança?
IV
Se esse membro da elite escapou da forca, outros dos implicados naquela revolta não tiveram a mesma sorte. Em 1817 ainda, em Portugal, o general Gomes Freire de Andrade, conde de Bobadela, cabeça de uma conspiração, foi ao patíbulo, antes mesmo que o rei d. João VI tomasse conhecimento dos fatos. E, no Rio de Janeiro, em 1821, muitos membros da aristocracia foram mortos em razão de um atentado ocorrido na Praça do Comércio, cuja responsabilidade é atribuída ao príncipe D. Pedro, futuro imperador do Brasil. Esses oligarcas estavam reunidos para eleger os eleitores do Rio de Janeiro que votariam nos deputados brasileiros às Cortes em Lisboa.
Como mostra o trabalho de Isabel Lustosa, aqueles agitados anos – que assinalaram a separação do Brasil de Portugal – foram marcados por muitas divergências entre os oligarcas. Muitos jornalistas foram perseguidos – e por jornalistas aqui se deve entender aqueles oligarcas que tinham posses para mandar imprimir folhas em que colocavam os seus pontos-de-vista e defendiam interesses próprios ou de grupos. Luís Augusto May, dono de A Malagueta, foi um deles. Em 1823, foi vítima de espancamento, que teria sido determinado por José Bonifácio, o principal ministro do governo ou, quem sabe, pelo próprio imperador.
Outra vítima do despotismo foi Giuseppe Stephano Grondona, italiano da Sardenha, o segundo jornalista a ser processado com base na Lei de Imprensa. Seu jornal, o Sentinela da Liberdade à beira do mar da Praia Grande, atacava violentamente d. João VI e a volta do absolutismo a Portugal. Por trás de tudo, estava, porém, uma questão essencial: que sistema de governo a nova nação teria de adotar? Onde estaria a soberania: no imperador ou na Nação?
V
Só por este trabalho de Isabel Lustosa o leitor há de perceber que este número da Revista Portuguesa de História do Livro é imperdível. Mas não é só. Há também textos de estudiosos como Beatriz Nizza da Silva, da Universidade de São Paulo, Marialva Barbosa, da Universidade Federal Fluminense, Carlos Francisco Moura, investigador brasileiro dedicado à história da edição nos últimos séculos, Luís Guilherme Pontes Tavares, professor universitário na Bahia, Luís André Nepomuceno, editor da Revista Alpha, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Patos de Minas-MG, e Enric Tormo Ballester, da Universidade de Barcelona, entre outros, além de uma entrevista que o editor Manuel Cadafaz de Matos fez, em 1983, em Lisboa, com o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre. Um número para não se botar defeito.
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REVISTA PORTUGUESA DE HISTÓRIA DO LIVRO: Brasil 2º centenário da introdução da imprensa no território. Lisboa: Edições Távola Redonda/Centro de Estudos da História do Livro e da Edição (Cehle), ano XII, vol. 23, 2009, 630 págs., 19,50 euros. E-mail: manuelcadafazdematos@cehle.com Site: www.cehle.com
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br
(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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