Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo *

sábado, novembro 12, 2011

Os personagens de Costa Fernandes são pessoas comuns que vivem no Rio de Janeiro daqueles “anos de chumbo”

O romance da geração de 70
                                                            
                                                                                                 Adelto Gonçalves (*)
                                               I

         Depois de publicar, em 2005, O Viúvo (Brasília: LGE Editora), definido por este articulista como um das poucas obras-primas do romance brasileiro do começo do século XXI, Ronaldo Costa Fernandes (1952) volta a incursionar no gênero, desta vez com Um homem é muito pouco (São Paulo: Nankin Editorial, 2010), que pode ser considerado o romance de uma geração, a geração que começa agora a chegar a seis décadas de existência e viveu convulsivamente o pesadelo das décadas de 1960 e 1970, a longa noite do terror direitista (1964-1985) que infelicitou a Nação. E que como legado favoreceu o fortalecimento de um conluio de antigos esquerdistas arrependidos com arrivistas e oportunistas de todos os matizes que, hoje, saqueiam a não mais poder os cofres da República.
            Dividido em quatro partes aparentemente desconexas e independentes, este romance, se tem um fio-condutor, este é um anti-herói nada simpático – um homem da antiga comunidade de informações, o capitão Vaz, ligado aos órgãos repressivos do regime militar (1964-1985), uma figura semelhante a Alfredo Astiz, o famoso Anjo da Morte, um dos símbolos macabros da ditadura argentina, que por estes dias acaba de ser julgado e condenado à prisão perpétua.
            A diferença é que os anjos da morte brasileiros que ainda restam por aí são fantasmas que se esgueiram pelos salões da sociedade, com a certeza de que nunca serão punidos por seus crimes. Até porque um dos economistas mais poderosos daquele tempo é, hoje, um venerando consultor de grandes empresas e do próprio governo, ainda que, àquela época, até a própria presidente de hoje fosse uma das integrantes do bando que o queria seqüestrar e, provavelmente, eliminar. São as voltas que a vida dá.

                                                           II
            Como é um romance de uma geração, Um homem é muito pouco traz à lembrança um livro daquele tempo que também marcou época, aos menos para aqueles jovens intelectuais de então, O afogado (Rio de Janeiro, Editora José Álvaro, 1971), de Abel Silva (1943), lançado no auge da repressão política. Formado em Letras, ex-líder estudantil, ex-morador do Solar da Fossa, residência coletiva localizada no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, que reuniu em determinada época os compositores e cantores Caetano Veloso, Gal Costa, Rui Castro, Torquato Neto e outros nomes conhecidos, Abel Silva enveredou pelo conto e fixou-se como poeta-letrista de compositores e intérpretes como Raimundo Fagner, Capinam, Luiz Gonzaga e outros.
            Como O Afogado, romance hoje esquecido, que, ao que se sabe, nunca teve reedição, a obra de Costa Fernandes é também o retrato daquela mesma geração desesperada, que não sabia muito para onde ir, mas que sabia muito bem que não pretendia seguir por aquele caminho que a horda de fascistas que haviam empolgado o poder queria levar o País. Era uma época de muitas ilusões em que se acreditava que a espécie humana podia ser reformada de cima para baixo, talvez por influência dos soviéticos. Hoje, quem anda pelas cidades da Rússia constata que o legado que deixaram são grandes edifícios de linhas retas em meio a largas áreas verdes na periferia em que viveriam os operários e que, hoje, não passam de pardieiros mal ajambrados. É o que se vê nos arredores da velha Moscou. Foi por esse “paraíso” que essa geração lutou. Se não chegou até lá, também não se perdeu grande coisa.     
               
                                                                              III
                De título enigmático, Um homem é muito pouco, de Ronaldo Costa Fernandes, se não pode se equiparar a O viúvo – afinal, nenhum autor é capaz de escrever só obras-primas –, é um romance que exige fôlego do leitor – e não só em razão de suas 488 páginas. E que por isso mesmo não deve atrair o leitor médio de hoje, que só se interessa por livros de auto-ajuda que contam a história de executivos bem-sucedidos chegados a episódios esotéricos e temas afins.
            Até porque, como diz o crítico Ramiro Teixeira, em artigo publicado no quinzenário As Artes Entre as Letras (Porto, 26/10/2011, pp. 6 e 7), hoje, “a Literatura é apenas um negócio e, sendo assim, possui um marketing indiferente ao valor do produto, mas extremamente sensível à mais-valia que retira do acessório ou do perfil social do autor”.
            Segundo essa visão mercantilista, escritor bom é aquele que se expõe ao ridículo das noites de autógrafos, imita os bobalhões estrangeiros autores de best-sellers, faz da História um espetáculo circense e dá declarações estapafúrdias às vésperas do lançamento em busca de visibilidade na mídia, tal como fazia o José Saramago dos últimos anos, já beirando a senilidade, que, como observa Ramiro Teixeira, tratava de preparar efeitos polêmicos, a partir da falta de respeito com as regras da pontuação. Imaginava-se talvez um Deus ex-machina que pudesse dar sentido à História.
            Como afirma Valentim Facioli na apresentação que escreveu para este livro, Um homem é muito pouco é constituído por narrativas que “experimentam variações do ponto de vista, em terceira ou em primeira pessoa e a identificação dos narradores é sempre um exercício de descoberta para o leitor”. Mas, uma vez identificado o narrador, o que exige um pouco de atenção do leitor, o caminho fica aberto para a compreensão da narrativa.
            De caráter existencialista, esta obra procura resgatar o mundo subterrâneo dos tempos sombrios da ditadura militar, mas não por meio de personagens desajeitadamente heróicos que arriscaram a própria vida para desafiar o poder armado daqueles anos, militando em (des)organizações esquerdistas, como o fizeram alguns militantes que, mais tarde, tornaram-se escritores de ocasião e hoje são políticos profissionais bem postos na vida.
            Os personagens de Costa Fernandes são pessoas comuns que vivem no 

Rio de Janeiro daqueles “anos de chumbo”, sem maiores aspirações, exceto sobreviver. Gente que se odeia ou se ama com a mesma intensidade, alguns com boas intenções e bons sentimentos e outros decididamente cruéis e insensíveis. A partir desses personagens, o autor tira algumas reflexões que surpreendem o leitor e o faz pensar, como quando, a propósito de um personagem embarcadiço por profissão, diz que “o pior clandestino é o sujeito que anda pela vida como se não pertencesse a nenhuma embarcação”. Ou, então, quando observa que “o sujeito pode trabalhar todo o dia como pedreiro ou carpinteiro, mas a alma continua vadia”.  Só por frases assim pode-se dizer que este romance não é “muito pouco”. Pelo contrário.

                                                                              IV
                Ronaldo Costa Fernandes publicou, entre outros romances, O viúvo (2005) e O morto solidário (1998). Ganhou vários prêmios, entre eles, o Casa de las Américas, Revelação de Autor da APCA e o Guimarães Rosa. Além de ficção, publicou poesia e ensaios, sendo um dos últimos “Considerações sobre um poeta: Lêdo Ivo”, publicado na Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras, nº 56, ano XIV, fase VII, jul.-set. 2008. Dirigiu por nove anos o Centro de Estudos Brasileiros no Venezuela e, de volta ao Brasil, a Coordenação da Fundação Nacional de Artes (Funarte), do Ministério da Cultura, em Brasília.
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UM HOMEM É MUITO POUCO, de Ronaldo Costa Fernandes. São Paulo: Nankin Editorial, 2010, 488 págs, R$ 50,00.  E-mail: nankin@nankin.com.br Site: www.nankin.com.br 

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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003 

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